Pedro Almodóvar não realizava uma comédia desde 1993, quando escreveu e dirigiu o hilário “Kika”. Em sua extensa filmografia, foi nesse gênero que mostrou grande talento ao expor seus personagens a situações constrangedoras, no melhor sentido da palavra. Nesse tempo, ele se dedicou a um cinema mais autoral e de grandes riscos (sempre certeiros), transformando-o em referência no mercado estrangeiro.
Após obras-primas como “Fale com Ela” (2002) e “A Pele que Habito” (2011) (permita-me incluir também “Carne Trêmula”, de 1997), Almodóvar retorna às comédias sem pudores, bem ao estilo dos impagáveis “Pepi, Luci, Bom e outras Garotas de Montão” (1980) e principalmente “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988). Em “Os Amantes Passageiros”, o cineasta prova que seu bom humor não morreu e nos entrega um entretenimento rápido e eficaz, quase impossível de não se divertir.
O longa se passa a maior parte dentro de um avião com destino ao México. Não precisamos de muitas explicações para “embarcar” nas aventuras que os passageiros e a tripulação irão se meter, por isso o que sabemos é apenas que o avião está impedido de pousar. Assim, os pilotos começam a voar em círculos até que uma pista de pouso esteja liberada para receber o avião. Enquanto isso, três comissários de bordo tentam acalmar os passageiros, que começam a pensar que essa viagem pode ser mais perigosa do que parece.
Ainda que levante sutilmente a crise espanhola, o foco não é fazer denúncias. Almodóvar quer realizar um besteirol que realmente faça rir, na contramão do nicho das comédias sem graça de Hollywood. E consegue. O cineasta insere o público em quase um road movie nos ares, trazendo excelentes desdobramentos narrativos e bom humor. O script expõe os personagens a situações embaraçosas, que questionam a fé, a integridade e, como não podia deixar de ser, a homossexualidade.
Aliás, Almodóvar elabora o filme mais autenticamente gay de sua carreira, e é claro que isso é um elogio! O trio formado por Javier Cámara, Raúl Arévalo e Carlos Areces é impagável. Os personagens são responsáveis pelas melhores tiradas e por um número musical divertido dublando a música “I’m So Excited”, título do filme em inglês, cantada pelas The Pointer Sisters. Vale ressaltar também o talento de Cecilia Roth, como a dominatrix e artista frustrada Norma; a beleza inigualável de Blanca Suárez, que tira o fôlego sempre que aparece na pele de Ruth, e a sensitiva virgem e quase fajuta Bruna, interpretada por Lola Dueñas.
As participações especiais de Antonio Banderas e Penélope Cruz estão ali apenas para constar, sem interferir na história. Paz Vega é desperdiçada em uma trama paralela pouco interessante, mas que se revela necessária para o desfecho da trama. Ótimo diretor de atores, Almodóvar extrai o melhor de seu elenco sem muita dificuldade. Todos afinados e bem definidos como personagens, o diretor entrega um filme galgado nas interpretações e na paranoia do roteiro. Também é interessante observar como o cineasta dribla o baixo orçamento da película, principalmente em seus momentos finais no aeroporto, dispondo apenas de uma boa ideia na cabeça e pouco dinheiro para produzir.
A montagem dinâmica conhecida das comédias de Almodóvar se precipitam em alguns momentos, já que algumas piadas pedem um pouco mais de tempo em cena antes do corte. Assim, algumas risadas entram na sequência seguinte e o timing se atrapalha. Elementos como o figurino e a direção de arte, tão essenciais em sua filmografia, repetem os princípios básicos de sempre. Já a trilha sonora discreta funciona com objetividade, sem tirar a atenção do público aos conflitos em tela, ao mesmo tempo que acentua a mise-en-scène.
“Os Amantes Passageiros” mostra que Almodóvar ainda está afiado quando o assunto é comédia. Totalmente distante do que realizou nos últimos 10 anos, o longa alivia a densidade dramática de suas histórias recentes e diverte espontaneamente. E o mais bacana de tudo é que a última cena dignifica o título do filme, nos fazendo perceber que ele também falou sobre paixão e amor do seu jeito pouco convencional.
Avaliação: 8/10
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.