Lois Lowry escreveu “O Doador de Memórias” em 1993 como parte de uma quadrilogia inspirada em um mesmo futuro distópico. A obra virou obrigatória nas escolas americanas principalmente por seguir uma narrativa mais filosófica, cujos conflitos não se dão por pura rebeldia, mas sim por uma maior compreensão social. Não existem jogos ou disputas. O que há no livro é a personificação de uma comunidade que abdicou de recordações, costumes, cores e interferências ambientais, para citar alguns, em busca de harmonia. A vilania nunca é clara, já que o sistema funciona de certa forma, e chega a ser compreensível as motivações para aquela estrutura, até que um escolhido colocará em risco aquele ambiente pacífico por acreditar que sem memórias, os sentimentos são restritos, e ninguém no mundo merece viver sem eles.
Pensar na fidelidade ao material original é inconsequente quando tratamos de obras cinematográficas. As linguagens divergem e algumas coisas que funcionam na literatura não combinam nas telonas, e vice-versa. Por isso, a liberdade de inventar em cima do original é possível e, quando é feita uma análise de uma adaptação, é preciso verificar se o filme em si se sustenta sozinho em seu recorte. Sendo assim, o roteiro do estreante Michael Mitnick e de Robert B. Wide (escreveu “Vítima do Passado” e tem mais afinidade com documentários) parte do mais fácil e didático: tentar mostrar aquele universo por meio a narração do protagonista Jonas (Brenton Thwaites). Se no livro Lowry gasta capítulos ambientando o leitor de como funciona aquela sociedade, o filme dá uma rápida pincelada sobre essas informações e cai diretamente na cerimônia que capacitará Jonas a ser o Recebedor de Memórias.
Sendo assim, fica claro que a intenção dos realizadores é criar mais conflitos do que filosofar. Para isso, os roteiristas inserem um romance adolescente açucarado para ajudar nas motivações de Jonas, o distancia de seu amigo especial Asher (Cameron Monaghan) e vilaniza a Anciã-Chefe (Meryl Streep). Nos dias de hoje, tais escolhas são apropriadas, pois facilitam um melhor desenvolvimento do longa, que precisa ter seus três atos bem estabelecidos e um clímax convincente. No filme, tudo acaba acontecendo muito rápido e o convívio de Jonas com O Doador (Jeff Bridges) segue sem muitas surpresas. É lamentável o descuido do roteiro ao se afastar do Doador, que é um personagem extremamente complexo e sofre por guardar todas as memórias do povo, para dar espaço ao romance de Jonas e Fiona (Odeya Rush).
Parece difícil para Brenton Thwaites segurar uma história dessa dimensão, mas o ator ganha pontos justamente quando está em cena com Odeya Rush ou Jeff Bridges. Aliás, Bridges, que também é produtor do longa, confere maneirismos esquisitos para o Doador, na tentativa de elaborar um idoso sábio. Tanto que Bridges está mais à vontade quando recorda sua relação com Rosemary (Taylor Swift) e demonstra vulnerabilidade. A atuação de Meryl Streep é inquestionável, na tentativa de manter a ordem e, na última sequência, mostra certa humanidade que não a transforma em uma vilã caricata. A rápida participação de Taylor Swift não dá para causar empatia, muito menos as performances de Katie Holmes e Alexander Skarsgard, perfeitamente robotizados.
O diretor Phillip Noyce faz uso acertado das cores do filme. Inicialmente em preto e branco, com o tempo as cores surgem em tela para justificar uma relação muito íntima do protagonista. A inserção de vídeos e fotografias para ilustrar as trocas de memórias entre o Doador e o Recebedor é uma alternativa bem-vinda, visto que essa transição de recordações, na obra original, é um dos pontos mais difíceis de levar ao cinema. Em alguns momentos, o cineasta é bastante feliz ao criar metáforas visuais, como na cena em que Jonas conhece o significado de guerra e seu choque é visto no meio de crianças brincando no parque.
O curioso é que Noyce peca justamente nas pouquíssimas cenas de ação, que foram seu forte em “Salt”, seu último trabalho no cinema. A montagem acelera demais o andamento da trama, não dando espaço para a correta passagem de tempo que justifica as ações do protagonista. Vale ressaltar ainda o bom trabalho de direção de arte e figurino do longa, que contribuem para um caráter futurista, mas com traços medievais, configurando que aquela sociedade que tanto preza pela harmonia ainda tem algo de retrógrado, que é justamente impedir que as pessoas se relacionem entre elas e desenvolvam seus sentimentos.
Se os indesejados são dispensados para Alhures, “O Doador de Memórias” tem o mesmo destino por atingir um resultado morno demais para a preciosidade literária de Lois Lowry. A distopia do original é bem mais cruel do que visto em “Jogos Vorazes” e “Divergente”, por exemplo, mas o filme não mantém essa ideia nem se qualifica nesse sentido. Entre acertos e erros para se enquadrar em uma baixa classificação indicativa e optando pelo malefício de forçar um romance bobo, é lamentável que o longa não seja forte o suficiente para ser lembrado.
Avaliação: 6/10
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.