É sempre complicado repaginar clássicos, já que as referências estão enraizadas na cultura visual e qualquer deslize pode ser fatal, principalmente para os mais apegados. Assim, os estúdios ficam entre a cruz e a espada: contar o mais do mesmo para satisfazer os xiitas ou oferecer uma nova proposta. Ao reviver seus contos para novas audiências, a Disney segue por um caminho delicado para mostrar que as suas histórias fazem parte de um universo mágico superior e aberto a mudança.
“Malévola” talvez não encontre o seu lugar de imediato, pois as mudanças radicais certamente aparentarão incoerência se relacionarmos com o que sabemos sobre a Bela Adormecida. Ainda assim, vale lembrar que a proposta não é contar mais uma história sobre princesas e príncipes vivendo felizes para sempre, mas fazer uma releitura poderosa de uma vilã que até então nunca teve voz para contar o seu lado. Linda Woolverton (“O Rei Leão”) foi a responsável por expandir esse universo, criando possibilidades que se comunicam com a história clássica e se adaptam a uma nova realidade fílmica.
Não deixa de ser previsível (ou necessário) que a vilã seja humanizada. As escolhas do roteiro deixam isso bem claro desde o começo, quando vemos Malévola como a fada protetora do mundo mágico onde vive. Do outro lado, os homens disputam o poder, buscam riquezas e carregam a arrogância dos invencíveis. Ao ter sua inocência devorada pelos humanos, Malévola se transforma em uma das piores vilãs dos contos de fadas. Para Woolverton e seus colaboradores de script, a maldade tem um ponto de partida. Ou mais de um. Para entender esse processo, a roteirista estabelece didaticamente os conflitos da protagonista que acaba optando por lançar um feitiço irreparável na princesa Aurora.
Angelina Jolie encarna uma personagem mais complexa do que aparenta, mergulhada em sofrimento físico e emocional. Sem cair na autopiedade, ela transita facilmente entre a bondade e a maldade, a perdão e a vingança, o amor e o ódio. Além de usar sua extensa experiência como atriz dramática, Jolie também investe no tom irônico necessário para Malévola. A performance é tão acima do esperado que chega a ser aceitável que os personagens secundários apareçam pouco, já que eles servem de escada para o desenvolvimento de Malévola.
A Aurora de Elle Fanning tem toda a doçura de uma princesa da Disney, mas o filme não é dela. Nem para ela. Na pele do corvo Diaval, Sam Riley mantém uma relação encantadora de equilíbrio e confiança com a personagem-título. Com apenas um olhar, Riley faz um raio X da tristeza profunda de Malévola. Sharlto Copley encarna o Rei Stefan, cuja sede de poder é capaz de levá-lo à loucura propriamente dita. As participações de Imelda Staunton, Juno Temple e Lesley Manville também são bem-vindas.
Não deixa de ser notável a inexperiência de Robert Stromberg como diretor, que não sabe resolver os problemas de ritmo e dar unidade à trama. Mesmo assim, nem Tim Burton, em “Alice no País das Maravilhas”, nem Sam Raimi, em “Oz: Mágico e Poderoso”, conseguiram alcançar um resultado geral tão sólido quanto Stromberg ao revisitar um clássico. Sua experiência com efeitos visuais (ele venceu o Oscar por “Alice no País das Maravilhas” e “Avatar”) resulta em um filme esteticamente belo, com figurinos exuberantes e um design de produção soberbo. Por outro lado, o uso do 3D não se mostra muito eficiente, podendo ser facilmente descartado.
Como sempre, a Disney não deixa de pregar os bons costumes e renovar a pureza do seu público por meio de suas pequenas lições. Por mais que sacrifique parte do que foi dito sobre a Bela Adormecida, “Malévola” se sustenta bem, mesmo com os tropeços e o marketing agressivo demais, que está estragando a recepção de algumas obras. Menos sombrio do que o prometido, mas eficiente ao humanizar a personagem-título muito além do bem e do mal, “Malévola” reavalia o amor verdadeiro em um mundo cada vez mais cruel.
Avaliação: 8/10
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.