Em 2007, Craig Gillespie realizou “A Garota Ideal”, comédia dramática que conta a vida de Lars, um rapaz tímido, vivido por Ryan Gosling, apaixonado por uma boneca de silicone em proporções reais. Os dois se conhecem pela internet e ele passa a acreditar que ela é uma mulher de verdade. No meio disso tudo, o roteiro aborda os dramas pessoais de Lars em busca de lidar com seus sentimentos. Agora, Spike Jonze volta às telonas com “Ela”, uma história que se comunica com o filme de Gillespie e constrói a representação de uma sociedade talvez não tão futurista assim, mas moderna, onde as pessoas se relacionam com as vantagens da tecnologia avançada, ainda que se preocupem em mandar cartas umas para as outras.
O universo criado por Jonze traz Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor que trabalha em uma empresa que escreve cartas por encomenda. Vivendo em um mundo onde as pessoas não se dão mais nem o trabalho de ler seus próprios e-mails, já que existem mecanismos que fazem isso por você, Theodore vive um momento de crise após a separação de sua esposa Catherine (Rooney Mara). Para driblar a solidão, ele decide adquirir um software que promete proporcionar momentos reais de interação. O sistema operacional, chamado Samantha (voz de Scarlett Johansson), passa a acompanhá-lo diariamente e logo eles se envolvem. Samantha parece ser aquilo que ele precisa, aceitando-o do seu jeito e preenchendo uma lacuna na vida do escritor que as pessoas “reais” não conseguem.
Tudo é encantador em “Ela”. Apropriando-se de uma temática que nunca sai de moda, os relacionamentos, Jonze utiliza a ficção científica para dar o charme e a graça que a história precisa para se diferenciar. Sem inventar conflitos mirabolantes demais, a trama apropria-se das sutilezas que nascem da mente do cineasta para ser concebida. Tudo que é visto é absurdamente familiar, até porque hoje as pessoas estão sempre conectadas, sejam sozinhas ou em grupos, seja em casa ou na rua, aos modernos celulares e seus aplicativos sedutores. Ao mesmo tempo em que a tecnologia aproxima os usuários e quebra barreiras, torna as relações cômodas demais. Às vezes, efêmeras demais. E isso causa um breve esquecimento de como o mundo real funciona.
Independente de Jonze criar como plataforma uma sociedade virtual à frente da nossa, aqui o principal assunto não deixa de ser o amor, as paixões e até mesmo as amizades. Samantha dá a Theodore um novo fôlego, estimulando-o em sua rotina e fazendo-o acreditar no amor. Mas até onde esse sentimento realmente procede? Ela foi programada para corresponder às expectativas de seu usuário, talvez por isso Theodore e os espectadores acreditem naquela relação. E a interpretação de Johansson é essencial para o encantamento da película. Samantha é capaz de nos convencer com sua personalidade e Johansson nunca precisa aparecer fisicamente em tela para que acreditemos no que ela representa.
Como adicional, Joaquin Phoenix esbanja química com a voz de Johansson, o que exige do seu trabalho como ator um desempenho acima do normal, e ele jamais decepciona ao construir seu Theodore com melancolia e esperança de mudanças. O trabalho de Jonze com o elenco, uma de suas principais características, se repete aqui com primor. O cineasta consegue arrancar de seu protagonista e de sua dubladora atuações que trazem credibilidade à narrativa. Sem o discernimento correto neste sentido, outro cineasta poderia escorregar na funcionalidade da trama. Além de Rooney Mara, as atrizes Amy Adams e Olivia Wilde completam o poderoso time feminino do longa.
O script também se permite brincar com o humor e com o ridículo, afinal “o amor é o ridículo da vida”. E isso é um elogio. Além de fazer emocionar mais de quatro ou cinco vezes durante a projeção, “Ela” traz a comicidade no nível certo, sem fazer com que o público perca o interesse pelos amantes virtuais. Quando a relação é colocada na parede, é inevitável não torcer por eles. E não há nada mais satisfatório do que criar essa empatia tão pessoal com o público, que certamente vai se identificar com algum fragmento do filme.
A trilha sonora de Will Butler e Owen Pallett muitas vezes potencializa demais os momentos dramáticos, mas isso não chega a comprometer o desempenho do longa. Os doces acordes são inerentes a Theodore e são tão personagens quanto ele. Destaque também para a fotografia do suíço Hoyte Van Hoytema (“O Vencedor” e “Deixe Ela Entrar”), que brinca com as cores sempre muito pessoais da trama, e para o design de produção de K. K. Barrett, que colaborou com Jonze no seu longa anterior, “Onde Vivem os Monstros”, e Gene Serdena.
Indicado a cinco estatuetas do Oscar 2014 (filme, roteiro original, design de produção, trilha sonora e canção original para a incrível “The Moon Song”), “Ela” toca o fundo do coração de qualquer um que já amou de verdade ou de quem um dia quer ser amado profundamente. Jonze confere à obra suas particularidades de sempre, que não nos faz cogitar outra pessoa, a não ser ele mesmo, capaz de elaborar um filme com esse poder. Por isso, chega a ser lamentável a ausência dele entre os melhores diretores segundo a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. De toda forma, seu talento como contador de histórias é inquestionável e “Ela” será um romance que nunca perderá a validade.
Avaliação: 10/10
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.