O cinema nacional muitas vezes esconde a alma para se adequar ao mercado, com os pipocões sendo lançados aos montes, quase sem critérios. Felizmente, existe um nicho muito forte da nossa produção audiovisual que percorre festivais nacionais, mas que nem sempre ganham distribuição em todas as salas de projeção do País. Assim aconteceu com Colegas, aclamado road movie de Marcelo Galvão, que encantou plateias nos diversos festivais que participou e agora estreia em circuito limitado.
Na trama, Stallone, Aninha e Márcio trabalham na videoteca do instituto onde moram. Cinéfilos assumidos, daqueles que sabem as falas dos filmes decoradas, um belo dia eles assistem a Thelma & Louise, de Ridley Scott, e decidem fugir em busca de seus sonhos. Stallone quer ver o mar, Aninha quer casar com um músico e Márcio quer voar. Eles partem sem rumo, invadindo circos, assaltando mercadinhos e… abraçando as poucas pessoas que os ajudam. Cada sonho vai sendo conquistado no decorrer dessa jornada, enquanto a polícia procura os três foragidos que, ao olhar das pessoas ´normais´, são bastante perigosos e estão altamente armados. Com armas de brinquedo e vestidos de gênio da lâmpada, super-herói e princesa.
Foram sete anos de desenvolvimento do roteiro, que passou por diversos tratamentos enquanto conseguia captar verba para ser realizado, já que muitos patrocinadores estavam duvidosos se atrelariam seus nomes a um filme com protagonistas downianos. Mas a alma de “Colegas” está justamente em não ser sobre síndrome de down, e sim sobre amizade. Apenas por acaso, os personagens têm síndrome de down. Não existe a pretensão de passar lições clichês sobre sermos todos iguais, independente das diferenças. A maior força do roteiro está na sensibilidade com que a jornada dos heróis é contada. O público vai facilmente do riso à emoção, se envolvendo perdidamente em uma trama leve e bem contada.
Um trabalho intenso de interpretação e memorização do roteiro foi feito com os atores enquanto o projeto não saía do papel, o que justifica o bom desempenho de Ariel Goldenberg, Rita Pokk e Breno Viola. Além de surpreenderem pelo magnetismo em cena, eles estão livres para improvisar. E o amor que eles têm pelo cinema também na vida real facilita a performance. Amor que também é facilmente notado por todos os envolvidos no longa, desde o elenco de apoio, composto por nomes como como Juliana Didone, Deto Montenegro e Leonardo Miggiorin, ao próprio Marcelo Galvão. A sutileza e a inocência são abrilhantadas pela excelente direção de arte e de fotografia e, como não poderia deixar de ser, pela trilha sonora.
A ideia de trazer diálogos famosos de filmes como Casablanca, Taxi Driver e Tropa de Elite funciona com brilhantismo. Galvão se inspirou em Tarantino, Spielberg e Truffaut, para citar alguns, e várias referências são jogadas na tela em formato de quiz, instigando os cinéfilos a identificarem cada uma delas. Infelizmente, o terceiro ato é prejudicado pelo melodrama e talvez o núcleo de filmagem na Argentina pudesse ser descartado, mas em momento algum atrapalha o desempenho da obra. A pequena participação de Lima Duarte traz magia à história, principalmente por sua narração que fortalece o tom de fábula.
Colegas é o tipo de filme que todos precisam assistir, tanto pela constatação de que muita coisa boa tem sido feita no lado B do cinema nacional quanto pela deliciosa diversão que nos é dada. Sem pretensões, o longa não levanta bandeiras e lida com o preconceito de forma sutil. Assim, Marcelo Galvão realiza uma aventura que é impossível não se envolver. Recomendado!
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.
Avaliação: 9/10