O triste legado que a escravidão deixou ainda afeta a sociedade atual, sujeita à forte discriminação não apenas aos negros, mas a todos os grupos considerados “inferiores”. Uma sociedade igualitária, independente de cor, orientação sexual ou estilo de vida, para citar alguns, ainda é um sonho. Na verdade, sonho mesmo é uma sociedade que respeite as diferenças e se importe menos com o que o outro faz. Baseado na autobiografia de Solomon Northup, publicada em 1853, “12 Anos de Escravidão” revisita esse doloroso capítulo da História e entra para a lista dos filmes mais importantes sobre o tema.
Na trama, Solomon (Chiwetel Ejiofor) é um escravo liberto que mantém uma rotina comum com a sua família. Respeitado, Solomon é culto e ama música, tendo no violino sua grande paixão. Certo dia, ele é enganado por dois homens brancos que o sequestram e o obrigam a se reintegrar ao esquema de escravidão no sul dos Estados Unidos. Seu primeiro mestre, Ford (Benedict Cumberbatch), tem até certa simpatia por Solomon, agora chamado de Platt, mas suas dívidas ultrapassam qualquer sentimentalismo que possa ter em relação àquele homem. A partir daí, acompanhamos os 12 anos de Platt de volta ao regime escravagista, na tentativa de se libertar e voltar para a sua família. Será com o mestre Edwin Epps (Michael Fassbender) que Platt enfrentará seus piores dias.
O poderoso roteiro de John Ridley estabelece com clareza a relação de posse dos brancos com os negros. Os escravos são tratados como mercadorias, que devem servir nas atividades campestres, dando bons resultados aos seus senhores. Entre chibatadas e humilhações, não existe diferenciação de sexo ou capacidade física. Eles foram comprados para servir, caso contrário são punidos. Por explorar a reintegração forçada dos negros à escravidão, o roteiro dispensa explicações didáticas sobre o sistema da época. O relevante para Ridley é mostrar o horror vivido por um entre tantos outros negros da época, presos a uma rotina desleal e sofrida.
Para tentar sobreviver, Platt esconde que é letrado, pois as consequências seriam piores. A ideia é que, com o passar do tempo, ele conquiste seus mestres e, quem sabe, seja libertado da escravidão. Mas não é tão simples assim. Os conflitos que aparecem irão questionar a resistência de Platt e os abusos sofridos por ele e por seus companheiros atingem sua subserviência. A relação que ele mantém com Patsey, vivida pela novata Lupita Nyong’o, é delicada. Além de negra, ela é mulher, que se submete ao carinho excessivo de seu mestre, mas que optaria morrer para encontrar a paz. Nyong’o, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, tem um dos momentos mais delicados e sensíveis da trama, bem como o mais cruel deles.
Chiwetel Ejifor encarna com inteligência o protagonista. Suas vulnerabilidades e sua crença de que o tempo e a justiça resolverão aquela situação dão a força que o personagem precisa. Sua relação com seus dois principais mestres, vividos por Cumberbatch e Fassbender, são avassaladoras, principalmente com o último. Fassbender constrói um tipo detestável, ostentador e inteligente. O poder que tem em suas mãos, que vai muito além do chicote que carrega, o cega e afeta até mesmo sua esposa, a arredia Senhora Epps, forte participação da atriz Sarah Paulson. Já Cumberbatch, um homem aparentemente bom e que talvez não entenda direito que a escravidão ultrapassa o sentido da existência, dá a falsa esperança que Platt pode ser salvo. Destaque também para a participação de Brad Pitt, que também é produtor do longa e pode vencer seu primeiro Oscar, que aparece no último ato como um sopro de esperança para Solomon.
E se a força do roteiro é evidenciada pelas fortes atuações, a direção de Steve McQueen não poderia ser menos eficaz. O cineasta elabora uma narrativa dinâmica, que jamais cansa o público. Os planos sempre bem elaborados tiram de cada situação o máximo de significado que pode, seja para emocionar ou para chocar. McQueen não poupa o expectador do choque, sendo quase impossível não compartilhar a dor que o filme exala. Destaque para os longos planos que expõem a situação irreparável do protagonista amarrado a uma árvore, enquanto os outros escravos continuam suas rotinas “sem perceber”. Ausentando-se de mostrar a passagem do tempo com didatismo, por meio de cartelas ou de uma montagem que certamente se tornaria confusa, as elipses são bem pontuadas e vemos o tempo passar por meio do desgaste e da aparência do protagonista.
Dispondo de uma equipe técnica irretocável, as grandiosas locações são valorizadas também pelo design de produção detalhista e os figurinos soberbos. A fotografia de Sean Bobbitt, que colaborou com McQueen em seus dois filmes anteriores, “Shame” e “Fome”, brinca com os limites da tela e com as tonalidades, nem sempre frias e nem sempre quentes. A cereja do bolo é a trilha sonora de Hans Zimmer, em mais um trabalho exemplar de como os acordes favorecem uma narrativa naturalmente poderosa.
Existe uma distância gigantesca entre “12 Anos de Escravidão” e os outros oito concorrentes ao Oscar 2014 de melhor filme. Além de ser uma experiência cinematográfica exemplar, onde linguagem e estética são perfeitamente desenvolvidas, o longa entra para a História ao retratar com crueza, mas sem perder a sensibilidade, de um dos períodos mais infames de todos os tempos. Assim, Steve McQueen realiza um filme obrigatório. A cena final, simplesmente arrepiante, dá a esperança de que um dia o mundo possa ser menos cruel e que o amor resolva boa parte dos nossos problemas.
Avaliação: 10/10
Texto originalmente publicado no Cinema com Rapadura.