Após uma semana intensa de programação, a primeira edição do Farol – Festival Internacional de Cinema de Fortaleza terminou na última quarta-feira (10) no Cinema do Dragão-Fundação Joaquim Nabuco. Com a proposta de múltiplas linguagens, a promessa é que o evento integre o calendário cultural da cidade junto a outros festivais, mostras e cineclubes, disseminando o audiovisual mundial e lutando pela formação de público.
Aproveitando-se da glória alcançada pelo Cinema do Dragão-Fundação Joaquim Nabuco, que neste primeiro ano revitalizou as salas do Dragão do Mar ao oferecer uma programação alternativa e diferenciada, o Farol contou com um grande público na noite de abertura, quando foi exibido o pernambucano “A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcante. Durante a semana, a frequência se manteve razoável, lotando as salas apenas nas sessões retrospectivas, que exibiram os clássicos “O Exorcista”, “Taxi Driver”, “Os Embalos de Sábado à Noite” e “O Poderoso Chefão”.
Excetuando a garantia de público que o Farol tinha nessas sessões, a programação de filmes inéditos oscilou, repetindo um problema presente em vários festivais nos últimos anos: a baixa participação. Não foi um problema exclusivo do Farol, que prometeu ser um evento de grande relevância para Fortaleza. Mesmo com os espaços não ocupados, é interessante notar como os estudantes e realizadores do cinema cearense marcaram presença principalmente na Mostra Brasil, curiosos para ver o que os seus contemporâneos estão fazendo. Demonstra disposição de aprendizado e compartilhamento de ideias, essenciais para nutrir o cinema local, que tem crescido e formado profissionais importantes.
Os curtas-metragens foram os mais prejudicados e neles estavam a maior preciosidade do evento. Os panoramas trazidos pelo 25º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo deixaram claro o quanto o cinema brasileiro alternativo está bem posicionado em relação a outras cinematografias. Já os longas foram marcados pela instabilidade, onde qualidade podia ser constantemente questionada, bem como as motivações dos curadores em exibir determinadas obras. Filmes como “A História da Eternidade” e “Movimentos Noturnos” até começam bem, mas se perdem ladeira abaixo na tentativa de elaborar um desfecho diferenciado.
Não consegui ver todos os filmes, por conflito de agenda com outros compromissos profissionais, mas listo a seguir os principais destaques que eu vi no Farol. O evento deixou a sensação de estar realmente começando dentro do circuito, deslizando aqui e ali, o que é natural e serve de aprendizado para as próximas edições. Fica a expectativa que o evento amadureça rápido e se torne uma referência no circuito de festivais brasileiros.
LONGAS-METRAGENS
“Sinfonia da Necrópole” (Brasil, 2014), de Juliana Rojas
Autora de curtas como “Um Ramo” e “O Duplo” e parceira de Marco Dutra, que aqui trabalha na composição musical, a inventiva cineasta Juliana Rojas elabora seu segundo longa após o premiado “Trabalhar Cansa”. Uma comédia musical com toques de suspense é mais apropriada do que podemos imaginar. Contando com um elenco competente em cena, com destaque para a incrível Luciana Paes, Rojas faz um excelente trabalho de gênero (três!) que preserva muita de sua identidade cinematográfica, como os elementos fantasiosos e o estudo de personagens, e diverte enquanto questiona o crescimento dos grandes centros urbanos em um paralelo com o remanejamento de túmulos em um cemitério.
“Castanha” (Brasil, 2014), de Davi Pretto
João Carlos Castanha, ator e performer de Porto Alegre, vive entre as obrigações sentimentais do cotidiano e as noites em casas de show, onde empresta seu talento como drag queen. Castanha revela-se o biografado perfeito para um filme que dialoga com as possibilidades do documentário como formato, cada vez mais próximo da ficção e das artimanhas da montagem. A arte do ator alia-se à arte do diretor, quase como feito por Eduardo Coutinho em “Jogo de Cena”. A diferença é que não importa o que é forjado e o que é natural. Tudo que está em cena faz parte de um universo que reflete sobre temas importantes, como a vida do artista, os vínculos familiares e a solidão de um personagem/ator/homem de meia idade em conflito.
“O Ato de Matar” (Indonésia, 2013), de Joshua Oppenheimer
Indicado ao Oscar desse ano, o documentário acompanha a vida de assassinos considerados heróis após o genocídio que matou milhares de pessoas na Indonésia. Oppenheimer elabora uma obra-prima que também experimenta o documentário como formato, inserindo as passagens ficcionais sempre com muita propriedade. A coragem do diretor não está apenas em revisitar um momento de horror, mas por criar um laço de confiança com seus personagens que rende depoimentos impactantes para quem assiste e naturais para quem depõe. Acima de tudo, o longa não perde tempo vilanizando os personagens e prefere discutir os direitos de viver em sociedade e o valor da vida humana, às vezes desprezada.
CURTAS-METRAGENS
“Sem Coração” (Brasil), de Nara Normande e Tião
Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes desse ano, o curta pernambucano conta a história de um garoto que vai passar as férias com um primo em uma ilha pesqueira. Lá, o personagem entra em contato não apenas com a natureza, mas com o despertar de sua sexualidade quando conhece uma menina apelidada Sem Coração. O convívio entre eles vai muito além de um possível romance adolescente. Os diretores fazem um excelente trabalho com o elenco de crianças, em um experimento quase documental daquela cidade. Com maturidade, a trama explora a juventude sem muitas precauções, sabendo explorar o silêncio ou os pouco diálogos para dar espaço a rimas visuais que funcionam com clareza na narrativa.
“Cuchipanderos” (Argentina), de Agostina Guala
O delicado curta argentino mostra quatro amigos de longa data em torno dos seus 50-60 anos. Não mais tão jovens quanto se conheceram, eles ainda compartilham bons momentos juntos. Por trás das rugas ou do cansaço físico, existe o frescor de ser o que se é e de ter pessoas importantes por perto. O maior mérito do curta é ambientar o tema da amizade em uma fase pouco explorada pelo cinema, sem necessariamente ser uma crise de meia-idade ou infantilizá-los como cinquentões que se sentem adolescentes. Os personagens são totalmente cientes de suas condições e, depois de tanto tempo, mantém o respeito e o amor (entre eles, entre homens, entre amigos) vivos. Um simples e belo registro que pode emocionar.
“Nua por Dentro do Couro” (Brasil), de Lucas Sá
A relação entre duas mulheres que vivem em um mesmo condomínio pode guardar surpresas. O novo thriller do jovem cineasta maranhense Lucas Sá guarda segredos que, mesmo após os créditos, ficam no ar (e serão guardados para um futuro longa-metragem). Mas o resultado visto em tela não decepciona e é mais um bom trabalho de gênero. O diretor já demonstrou sua paixão por histórias sanguinolentas e de vingança em curtas anteriores, como “O Membro Decaído”, e aqui mais uma vez ele revisita o suspense psicológico, onde a densidade dos personagens é a força motora de funcionamento da trama, seja do lado dramático ou do lado fantasioso. Destaque para as performances de Gilda Nomacce e Miriã Possani.
“A Era de Ouro” (Brasil), de Leonardo Mouramateus e Miguel Antunes Ramos
O curta acompanha uma mulher que desistiu de sua arte para ganhar a vida em São Paulo. Enquanto tenta se convencer de que a cidade grande é o seu novo lugar, uma antiga paixão aparece para questionar até onde aquele sonho que ela tinha vale a pena. É fácil se associar aos conflitos da personagem vivida por Ana Luiza Rios, extremamente segura e impecável em cena. Os diretores refletem sobre a cidade que nunca para e os anseios que nem sempre seguem o mesmo ritmo, mostrando as relações que duram pouco e questionando as escolhas que fazemos. Visualmente belo e trazendo poética no meio do caos, é um dos melhores trabalhos de Leonardo Mouramateus.
“Bashar” (Brasil/Egito), de Diogo Faggiano
Ao contrário do que acontece em “O Ato de Matar”, o curta de Faggiano não esconde seu lado ativista. Ao falar sobre a guerra civil na Síria enquanto intercala uma entrevista do presidente Bashar Al-Assad, o diretor lança uma visão bem mais complexa do conflito vivido por lá. Contrapondo política, sociedade e poder da mídia, o resultado é um interessante (e pessoal) estudo sobre o íntimo da guerra e suas consequências. A transparência e o desapego da imagem como mera ilustração são trunfos da narrativa, que brinca com a montagem para construir muito mais do que um boletim informativo, mas uma experiência crua e brutal da guerra que, muitas vezes, parece um produto ficcional ou midiático.
“O Clube” (Brasil), de Allan Ribeiro
Grande vencedor do Festival de Paulínia desse ano, o curta mostra a comemoração do 53º aniversário da Turma OK, tradicional clube gay do Rio de Janeiro que reúne transformistas de meia idade. Allan Ribeiro é um cineasta impecável na concepção de suas histórias e novamente cria um filme híbrido onde os personagens interpretam situações reais daquele lugar. O respeito pela trajetória do clube e pela performance de suas atrações, musicalmente tradicionais, são belamente registrados, mesmo que algumas interpretações apareçam fora do tom. Não prejudica o resultado final, que não deixa de ser uma grande homenagem ao movimento gay no Brasil. Foi delicioso ver o curta dialogar com “Castanha” e “Cuchipanderos”, em suas proporções.
“Estátua!” (Brasil), de Gabriela Amaral Almeida
Estrelado pela atriz pernambucana Maeve Jinkings, o curta acompanha uma mulher que trabalha de babá de uma garota. À medida que a relação entre elas se estabelece, um clima estranho se estabelece. O trabalho de Gabriela Amaral Almeida é um dos mais interessantes que temos atualmente. Sua capacidade de contar bons dramas familiares e transitar entre gêneros renderam joias como “A Mão que Afaga” e “Terno”. Em “Estátua!”, a firmeza da direção rende sequências belíssimas, que vão desde o suspense sugerido até a sensibilidade de uma história infantil. Maeve Jinkings, estrela de “O Som ao Redor” e “Amor, Plástico e Barulho”, devora a tela com todo o seu talento e demonstra se encaixar em qualquer tipo de história.
“Réquiem” (Itália), de Valentina Carnelutti
Ainda na pegada infantil, o curta italiano de Valentina Carnelutti integrou o Panorama Internacional do Farol. Na trama, uma mãe e dois filhos parecem levar uma vida normal. Certa vez, as crianças acordam e a mãe passa o dia dormindo. Sem querer despertá-la, as crianças precisam desempenhar suas rotinas normalmente: alimentação, banho e brincadeiras. A delicadeza da história não apaga a densidade com que a cineasta elabora os conflitos, principalmente com a entrada dos personagens secundários que verificam o que acontece com a matriarca. Com uma breve referência ao conto da Bela Adormecida, a diretora não perde tempo se explicando demais ou investindo no melodrama. Uma bela reflexão familiar.
“Até o Céu Leva Mais ou Menos 15 Minutos” (Brasil), de Camila Battistetti
É humanamente impossível não se divertir e se encantar com essa aventura de três crianças e duas mães passeando pelas ruas de Fortaleza. Por onde passou, o curta foi sucesso absoluto. Cheio de graciosidade, o documentário traz a espontaneidade infantil como seu principal trunfo. Battistetti sabe como provocar e mimar as crianças, o que rende momentos hilários neste passeio de carro. Seja brigando por um pirulito ou disputando atenção, o trio é carismático o suficiente para manter o espectador conectado do início ao fim. Uma simpática jornada se constrói, onde os limites entre o documental e a provocação ficcional dialogam com eficiência.