Especial: Jorge Mautner – O Filho do Holocausto, de Pedro Bial e Heitor D’Alincourt

Jorge Mautner - O Filho do Holocausto

Por mais que “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” seja indissociável de uma abordagem política e social que carrega em seu título, o documentário é, acima de tudo, sobre a construção do artista, a partir do mito do herói. Baseado no livro autobiográfico homônimo, Pedro Bial e Heitor D´Alincourt passam de fãs confessos do cantor, compositor, escritor e transgressor Jorge Mautner, hoje com 72 anos, a contadores de uma história de vida que pouca gente conhece.

A obra original conta do nascimento de Mautner até os 17 anos. Ele nasceu no Brasil pouco tempo depois de seus pais fugirem do Holocausto. Criado a vida inteira por uma babá que o apresentou ao candomblé, o herói dessa história se transformou em um precursor do Tropicalismo no Brasil, contribuindo para a construção da identidade da nossa música. O documentário é feito com fontes primárias, já que os principais amigos de Mautner ainda estão vivos, com exceção de Nelson Jacobina, que faleceu este ano, mas participou do filme.

Após passar pelos festivais de Gramado, de Pernambuco e do É Tudo Verdade, o documentário integrou a mostra competitiva da nona edição do Amazonas Film Festival nesta última semana, onde foi aclamado pelo público que lotou o Teatro Amazonas. O principal objetivo de levar a vida cativante de Mautner ao cinema é mostrar aos brasileiros a importância dele para a cultura brasileira. “Jorge foi muito generoso em ceder a sua vida para a gente. Foi um trabalho muito bacana fazer isso com ele ainda vivo”, afirma Heitor D´Alaincourt, que codirige o longa em parceria com Bial – ele não pôde ir ao evento por conflito de agenda e por estar se preparando para apresentar o filme em Londres.

O projeto surgiu da profunda admiração que os diretores têm pelo artista multifacetado. “Eu tinha uma banda que o acompanhava há 20 anos, e isso estreitou a minha relação e admiração. Quando ele lançou o livro, eu e Bial, que também é filho de pais refugiados do Holocausto, vimos que seria um momento bacana para contar essa história. Jorge abraçou de cara o projeto e conseguimos o suporte do Canal Brasil para que fosse possível realizar o longa”, completa D´Alaincourt, que também é produtor musical.

O profeta

Os depoimentos e as imagens raras, algumas inéditas, foram retirados da Cinemateca Brasileira e do Centro de Documentação da TV Globo (Cedoc), pela intensa pesquisa realizada por Carla Siqueira. D´Alaincourt conta que o roteiro foi construído praticamente de forma ficcional, já que os diretores sabiam o que queriam no longa desde sempre. Até mesmo a forma de inserir Mautner no documentário tem seus traços ficcionais, já que sua trajetória ainda é pouco conhecida ou lembrada pelos brasileiros. Isso o transforma em um personagem impossível de não se interessar. “Tivemos um processo de maturação muito bom por conta da necessidade de cronograma, que foi adequado à agenda corrida de Pedro Bial. O mais difícil de conseguir foi o material usado na parte da guerra, que a gente teve que acessar arquivos internacionais, mas, mesmo assim, não foi um trabalho tão complicado de fazer”, diz Heitor.

O envolvimento de Bial foi essencial para que a obra estivesse pronta – e não apenas pelo fácil acesso aos arquivos do Cedoc. “O cara sabe tudo e é um grande contador de histórias para se expressar na tela. Ele sabe tudo”. Bial também teve participação ativa na montagem do documentário. D´Alaincourt lembra que a montadora do filme, a cubana Leyda Nápoles Viant, conheceu Mautner durante o processo de montagem. “Ela foi nosso primeiro público. Se ficava redondo para ela, estávamos no caminho certo. Usamos isso como canal. A partir daí a gente via o termômetro”.

O trabalho minucioso de pesquisa histórica, que aborda temas como o nazismo e a Mitologia do Kaos, se mistura a números musicais. É como se as canções potencializassem cada acontecimento da vida do artista. Além das entrevistas, o próprio Mautner faz uma leitura em cena da obra que inspirou o filme. Os diretores entrelaçam a narrativa de forma dinâmica, ora com leituras, ora com depoimentos, ora com músicas. Por mais que o público não conheça ou pouco tenha ouvido falar de Mautner, ouvir a trilha sonora é tão fundamental quanto conhecer o personagem.

Canções

Para o diretor, a música brasileira e o cinema nasceram um para o outro. O documentário musical, que se popularizou na indústria cinematográfica, ganhou força no circuito alternativo brasileiro com filmes como “Loki – Arnaldo Baptista”, de Paulo Henrique Fontenelle, e “O Homem que Engarrafava Nuvens”, obra obrigatória aos fãs e não fãs de Humberto Teixeira, do diretor Lírio Ferreira.

Foram gravadas cerca de 22 músicas para compor o longa. Sucessos como “O Relógio Quebrou”, “Maracatu Atômico”, “Sapo Cururu”, “Cinco Bombas Atômicas”, “Tataraneto do Inseto” se misturam a duetos com Gilberto Gil e Caetano Veloso, como “Vampiro”, “Todo Errado” e “Rouxinol”. Aliás, um dos momentos mais marcantes do documentário é quando Mautner se reúne com Gil, Caetano e Maria Helena Guimarães, que relembram a experiência que tiveram em Londres por volta de 1970, quando decidiram filmar “O Demiúrgo”, repleto de metáforas poéticas e que não necessariamente fazia denúncias políticas escancaradas. Era um filme apenas sobre arte, música e saudades do Brasil. “Essa parte foi completamente espontânea. Não tem como dirigir Caetano, Gil e Mautner juntos. A gente fazia as perguntas e eles falavam. Eles são amigos e levaram pra uma grande brincadeira, era muita brodagem rolando”, conta D´Alaincourt.

Vida pessoal

Quando o projeto foi apresentado a Mautner, ele ficou preocupado com a exposição de sua vida pessoal, mas logo foi confortado pelos diretores, que afirmaram que a maior intenção da produção era levantar a sua bola como ícone pop. Já nos minutos finais do documentário, Amora Mautner, filha do músico, trava uma das conversas mais deliciosas da trama.

Eles falam da infância da garota e das curiosidades e irreverências de Jorge (ele adorava andar pelado ou apenas com uma sunga), o que teoricamente teria “traumatizado” a vida de Amora (nome escolhido não pela fruta, mas “por ser o feminino de Amor”). “Jorge fez as maiores loucuras, mas nunca o vi reclamar de nada, nunca falou ´o sistema foi injusto comigo´. Ele é um cara que era cobaia dele mesmo, que estava lá para fazer as coisas que ele acreditava”, define o diretor.

Estética

Um dos grandes diferenciais do longa é a quebra da estrutura clássica do documentário, realizando jogos de cena dinâmicos e, principalmente, exuberantes. A fotografia e a direção de arte, por exemplo, foram peculiarmente pensadas para dar um ar de espetáculo musical até mesmo quando não existe trilha sonora em cena.

“Quando começamos a trabalhar no roteiro, a concepção estética ficou clara e não tinha como dar vida apenas com os recursos do Canal Brasil, então o filme ganhou patrocinadores. Para a fotografia, pudemos usar câmeras Red e 5D. A direção de arte foi planejada e desenhada com todas as referências da vida de Mautner em um mosaico tanto como artista, escritor, poeta, músico e pintor. Foi um trabalho detalhista que eu nunca tinha feito em um documentário antes”, diz Tereza Alvarez, produtora.

O longa já possui distribuidora e espera-se que o lançamento em circuito nacional aconteça em janeiro. Até lá, “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” continua passando por festivais e mostras especiais, difundindo uma parcela da identidade cultural do nosso País que todo mundo merece conhecer.

A matéria foi publicada originalmente no Jornal Diário do Nordeste.

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