Nada de fato mudou para Alina Grigore ao dirigir o seu primeiro longa-metragem, Lua Azul (Blue Moon, 2021), vencedor da Concha de Ouro no Festival de San Sebastián, que integra a programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nascida na Romênia, a realizadora começou a estudar interpretação ainda criança, posteriormente transitando como atriz em produções de teatro, televisão e cinema. Sempre interessada em processos cênicos, Grigore se diz obcecada pelos métodos e técnicas de pesquisadores como Constantin Stanislavski, Stella Adler, Michael Chekhov e Vsevolod Meyerhold.
Tal interesse fez com que Grigore se tornasse professora de interpretação em 2011 e, até hoje, ela se desafia a entender como funciona a mente dos atores. A diretora também estuda diferentes métodos de storytelling a partir da criação de roteiros e, sobretudo, dos modelos de interpretação. Em entrevista realizada virtualmente*, Grigore afirma que ser professora a ajudou a entender a função da direção e, após ser encorajada pelo cineasta Adrian Sitaru, com quem trabalhou em Ilegitim (2016) como protagonista e corroteirista, decidiu expandir sua relação com o cinema e, finalmente, dirigir a sua primeira produção. Atuar, escrever e dirigir a fazem tentar compreender a vulnerabilidade humana que um personagem pode ter, como podemos ver bem em seu debut.
A protagonista de Lua Azul é Irina, interpretada por Ioana Chitu, que mora na zona rural da Romênia, mas deseja voltar para a capital Bucareste para fazer faculdade. Os parentes, no entanto, interditam a decisão da garota por acreditar que ela é mais útil ajudando nos negócios da família e que a sua segurança e conforto dependem deles. Irina trabalha ao lado do primo analfabeto Liviu (Mircea Postelnicu), que mantém uma relação emocional violenta com ela. Quanto mais Irina tenta se livrar do protecionismo da família, mais turbulenta se torna a relação entre eles. Em paralelo, a protagonista começa a se relacionar com um homem casado que pode ter violentado-a em uma festa. A complexa trama surge de memórias pessoais de Grigore, com o propósito de iluminar uma realidade dura que faz parte de diversos jovens na Romênia de hoje.
“A diferença entre nós é que eu era uma observadora. Irina se tornou a garota agressiva da minha comunidade. Esse é um roteiro sobre famílias disfuncionais, mas é algo que, infelizmente, é muito comum na nossa comunidade, em especial na zona rural da Romênia. Eu me identifico com ela porque eu era provavelmente a melhor amiga de uma garota como ela. Então eu entendo totalmente o que ela está passando. É por isso que eu estava interessada em não necessariamente construir uma história, mas uma jornada emocional para que o público possa ver e sentir pelos olhos de Irina as situações problemáticas e não necessariamente seguir uma história de um ponto de vista de um observador distante. É uma situação muito comum na Romênia. Tudo que acontece lá, da violência doméstica à falta de incentivo à educação, é muito comum. Apenas 2% dos garotos e garotas estão seguindo uma educação formal”, afirma Grigore.
Durante essa jornada emocional, Irina se vê presa aos tentáculos familiares sem poder pelo menos tentar pensar sozinha. Para Grigore, a obsessão e o assédio dos parentes não estão baseados na falta de afeto. A tentativa do filme é apontar que eles se sentem emocionalmente conectados com Irina do jeito deles, ainda que, na perspectiva de alguém de fora, pareça que não existe nenhuma responsabilidade emocional no caso familiar retratado pelo filme. Irina é constantemente perturbada e violentada verbalmente, em especial por Liviu, que a trata como uma funcionária submissa cujos desejos não são compreendidos.
“O filme faz isso tentando entender o lado emocional tanto do agressor quanto da vítima. Eu nunca quis fazer um filme sobre liberdade feminina ou masculinidade tóxica. Eu apenas quis tentar observar o que está acontecendo na Romênia, e o que está acontecendo com a comunidade rural. E eu acho que isso acabou vindo para a superfície. Eu acho que um do motivos de agregar tantos temas importantes, como você fala, é porque nós éramos obcecados em ir ao fundo da mente não apenas da vítima, mas também do agressor. Para nós, era importante entender como funciona esse triângulo da vítima, do salvador e do agressor, e como eles se relacionam emocionalmente”, continua.
A busca pela complexidade emocional dos personagens sempre foi um norte para Grigore que, desde o começo da ideia para Lua Azul, juntou o elenco, o montador e o diretor de fotografia na mesma mesa para pensar coletivamente. A diretora conta que esse processo foi essencial para compreender que era necessário criar um caminho emocional que fizesse com que o público percebesse a história pelos olhos de Irina. Dessa forma, a equipe do filme começou a jogar com os campos da imagem, criando perspectivas visuais que embaçassem ou tornasem visível o significado de mundo para Irina e para os demais personagens, dependendo de qual função eles ocupam, seja de agressor ou de vítima. Assim, percebemos as estratégias de Grigore ao aproximar a câmera para “sufocar” Irina no auge das perturbações que enfrenta, bem como de se afastar dos agressores tornando suas atitudes completamente visíveis em cena.
Exibido na última semana também na Vienalle, festival de cinema mais importante da Áustria, Lua Azul teve múltiplos desfechos filmados para a trama. O que ficou no filme, aberto a interpretações e belamente orquestrado por Grigore, foi escolhido por consolidar um desfecho tanto para a vítima quanto para o agressor. Nesse sentido, é importante ressaltar que Grigore não humaniza exatamente os agressores, mas não o renega a mero acessórios de uma trama feminina. Assim, o que a diretora elabora é um filme corajoso baseado, antes de qualquer coisa, em mostrar como relações tradicionais na zona rural romena se estabelecem.
“Nós decidimos que se Irina é mantida nesse triângulo, e se ela é a vítima, e não necessariamente a sobrevivente da situação, então ela definitivamente não é capaz de controlar as próprias decisões. Ela é inconsciente dos próprios atos. O sangue que aparece às vezes é um elemento que reverbera e é muito importante para o final do filme o fato de que o sangue, na perda da virgindade, dá a ela um potencial para lutar, então se torna a fonte de vingança e do escape. Do mesmo jeito, o sangue é o mesmo elemento que traz ela de volta para casa. E não necessariamente de um jeito positivo, mas porque, assim como qualquer outra vítima, ela é incapaz de entender ou de fazer com que ela lute”, explica a diretora.
Grigore, que afirma assistir e amar filmes brasileiros, citou Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, como uma das grandes experiências que teve. “Eu acho que o que nós temos em comum é um cinema que tem coragem de mandar uma mensagem para o mundo. Um cinema que explora personagens para entregar histórias profundas, intrigantes e imersivas. às vezes talvez lutando contra o comercial”, conta. Recentemente, a cineasta encerrou as gravações de um novo longa-metragem que, segundo afirma, não saberia definir sobre o que se trata exatamente. Há mais uma vez a explosão das tensões em cena de forma múltipla, dessa vez atingindo nove personagens principais.
“Do mesmo jeito que eu descobri sobre o que era Lua Azul durante o Festival de San Sebastián, eu provavelmente vou descobrir sobre o que é esse novo filme depois de chegar ao público. Mas o que eu posso dizer é que nós estamos trabalhando do mesmo jeito. Eu também estou escrevendo um novo roteiro que tem uma protagonista que será interpretada pela Melissa Leo, vencedora do Oscar. O filme será sobre debates políticos e como eles podem separar uma família. Estamos trabalhando muito nele. Antes da pandemia, eu encontrei a Melissa e nós iremos trabalhar os personagens do mesmo jeito dos outros dois longas. Então acredito que seremos capaz de desenvolver isso em breve”, finaliza.
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*A entrevista foi realizada em inglês e traduzida livremente para o português pelo autor.
Filme visto na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.