Avaliação: ★★★☆☆
Considerado o primeiro estado a abolir a escravidão, o Ceará mantém relações próximas com o povo africano. Não necessariamente de tolerância em relação à etnia, mas em intercâmbio cultural. Diversos jovens saem de seus países de origem para estudar na capital e em municípios como Redenção, a cerca de 70km de Fortaleza. Eles procuram uma formação acadêmica de qualidade e, para isso, abrem mão de seus lares e dos laços afetivos. O documentário “Do Outro Lado do Atlântico”, dirigido por Daniele Ellery e Márcio Câmara, acompanha alguns desses jovens que estão de passagem pelo Brasil e outros que já criaram raízes por aqui.
Felizmente, o longa-metragem abre mão do teor institucional, sem se entusiasmar muito com a qualidade controversa do ensino no País. Logo no começo do filme, alguns jovens conversam sobre a dívida com o povo africano, que ainda não foi paga, sinalizando que a possibilidade de educação que existe no Brasil para eles não é necessariamente uma salvação, mas uma questão de honra. O longa reconhece a existência de um plano de formação para o povo africano, mas o que interessa mesmo é saber como eles atravessam o Atlântico e se integram em outra realidade.
Os realizadores optam por dar voz aos próprios estrangeiros e suas respectivas trajetórias. Ellery e Câmara demonstram respeito com os entrevistados, o que acentua a qualidade dos depoimentos em cena. Eles conversam sobre choque cultural, semelhanças e diferenças entre os povos, receptividade dos brasileiros, relacionamentos afetivos do passado e do presente, intolerância e tantos outros assuntos que são pertinentes não apenas para eles, mas também para nós mesmos. É interessante notar que alguns deles, que já estão aqui há mais tempo, têm total conhecimento não apenas sobre as suas próprias origens, mas também sobre a cultura brasileira, respeitando-a e transformando-a.
Ao chegar no Brasil, eles continuam vivendo em comunidade, o que facilita a integração social e a preservação de suas origens. A mescla com os costumes locais acontece com naturalidade. Independente de serem alvos fáceis para a intolerância, eles entendem que não é só com eles. Existe a compreensão de que a sociedade precisa se desamarrar dos preconceitos e aprender a ver o que é “estranho” por outro contexto, independente de raça, religião, gênero ou qualquer outra fatia que ainda sofre com a discriminação. Não é motivo para voltar para casa. Pelo contrário, é mais um incentivo para ficar aqui e mostrar que eles existem.
Logo, a riqueza do documentário está nesse encontro com os personagens. Os diretores não têm a intenção de transformar o filme em um exercício de estilo, optando por um formato mais tradicional. Com isso, denuncia uma montagem pouco efetiva que tem dificuldade em colocar os ótimos personagens para dialogar. Vemos blocos de histórias que têm seu merecido espaço, cujo discurso emparelhado rende alguns momentos que parecem repetitivos ou longos demais. Os melhores suspiros do filmes acontecem ao registrar os seus próprios costumes, seja com a sensualidade da dança ou com a vaidade das tranças. É aqui que o filme cresce e revela a importância da preservação da língua e da cultura.
“Do Outro Lado do Atlântico” é um filme leve que toca em feridas históricas, sem problematizar demais, ciente de que é mais valioso mostrar como os estrangeiros se integram ao nosso País e (re)constroem suas vidas. Sem ser panfletário, o documentário é fruto não apenas de uma pesquisa bem fundamentada, mas do olhar dos diretores ao lidar com os personagens.
Texto originalmente publicado pelo autor no site da Aceccine.