Preso após os crimes cometidos em Coringa (2019), Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) se prepara para enfrentar os protocolos de um julgamento fadado à condenação. A defesa alega que a fragmentação psicológica de Arthur, devido aos traumas vividos no passado, teria provocado os atos de violência do anti-herói. Prato cheio para um espetáculo midiático e moral, a figura de Coringa é exaltada por uma legião de fãs, mas a rotina na cadeia não é das melhores, mesmo que ele seja uma celebridade.
Em Coringa: Delírio a Dois (2024), o diretor Todd Phillips procura dar uma sobrevida de mercado a uma produção que não apenas foi chancelada pelos votantes do Oscar, mas que também usufruiu da superinterpretação em diversos campos temáticos, esbarrando quase sempre nas leituras e associações sobre o que há entre o bem e o mal. Assim como o filme anterior, não há a oferta, de fato, de um grande exercício cinematográfico, mas há um verniz cuja aparência é sedutora e permanece aberta a interpretações variadas.
A história de Coringa coube perfeitamente no rol de filmes comerciais que criam substância para refletir sobre o mal-estar na sociedade – quase um filme autoral, mas com orçamento de USD 50 milhões (valor quase quadriplicado na sequência). Não que seja responsabilidade única do cinema resolver ou representar todos os problemas do mundo, mas há uma certa vaidade e muita vontade de validar filmes de heróis como instrumentos refinados de transformação social, quando não teria problema algum se eles fossem apenas boas peças de entretenimento.
As primeiras discussões foram tão exaustivas e esticadas que, nessa nova produção, a pertinência do debate não vai muito além do que já foi dito. Pelo contrário, parece regredir até mesmo quando tenta questionar a sociedade do espetáculo, tema já tão melhor problematizado em outras produções. Isso se deve à pouca criatividade de Phillips e equipe. Na tentativa de ser muita coisa, Coringa: Delírio a Dois vai se reduzindo a vários nadas. Não se destaca como drama político, muito menos como romance. É constrangedor como filme de tribunal, sem o menor trato de construção dessa atmosfera, e mais ainda como exercício do gênero musical.
Fica muito claro que as cenas cantadas são momentos de imaginação, quase abstrações pelas quais os personagens conseguem se deslocar de uma realidade dura para delirar sobre outras coisas e sobre eles mesmos A questão é que a proposição dos números musicais sequer refrescam a trama e aparecem como inserções de show de calouros. Em determinada sequência (sem spoilers), chega a ser escandaloso ver Lee (Lady Gaga) evocar uma das músicas mais bonitas de todos os tempos após um diálogo conjugal constrangedor que não se desdobra como fundamento narrativo. Não dá liga.
Sem a ajuda de um bom roteiro e diante de um diretor sem criatividade, Lady Gaga se esforça para colocar o seu personagem à frente da persona que criou com muito êxito na música. Gaga é um artista rara com inteligência o suficiente para não se esgotar como criadora, mas suas escolhas como atriz penetram muito pouco nas possibilidades do que ela pode, de fato, fazer com o seu próprio talento. Não está em análise o quanto as músicas que Lee canta em cena são bonitas se abstraídas dos problemas do filme em si, mas a Arlequina de Gaga parece tratada como um simples macguffin cuja relevância vai se dissipando até se transformar em um nada.
Defensores dizem que a intenção de Phillips era essa mesmo, algo como revirar expectativas sobre o que poderia ser essa continuação e jogar com o público. E é nessa crítica às boas intenções e ao resultado que uma avaliação insatisfatória pode ser dada. O jogo não foi bom. Não estou aqui para vislumbrar outras possibilidades do que poderia ser esse filme, mas para revirar justamente o produto que foi entregue. E, nesse sentido, não há como me convencer de sua importância ou de que esse não é só mais um capricho espalhafatoso do que o mercadão pode fazer hoje: mascarar uma piada de mau gosto com a densidade de uma pluma.
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