Crítica | Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer

Bohemian Rhapsody

O show tem que continuar

Os conflitos de produção de “Bohemian Rhapsody”, que culminaram na demissão do diretor Bryan Singer em dezembro do ano passado, ficaram claros na versão final da obra. Há uma diferença gritante entre o primeiro ato e o restante. Se inicialmente temos uma narrativa que parece desmoronar a cada conflito que é jogado em tela de forma rápida, o longa se transforma em uma trama um pouco mais eficiente ao explorar as múltiplas facetas do ícone da música Freddie Mercury.

É bom registrar que “Bohemian Rhapsody” parece não querer biografar a banda Queen, ainda que seja inevitável falar sobre o sucesso estrondoso do grupo de rock. O interesse principal reside sobre a figura de Freddie Mercury. Os músicos Brian May, Roger Taylor e John Deacon estão lá, mas o roteiro de Anthony McCarten e Peter Morgan coloca o vocalista como a força da trama. Isso porque, antes de ser uma cinebiografia musical, é um registro sobre a irreverência de um homem em processo de autoconhecimento que busca alternativas para driblar a solidão, ainda que nem sempre saiba lidar com elas.

O que deve incomodar alguns fãs do grupo na verdade pode ser uma boa estratégia para não revelar uma possível superficialidade (ainda que sempre será insuficiente para quem conhece “tudo” sobre o biografado). Não tem como dar conta de todos os detalhes e o cinema romantiza, pondera e reduz acontecimentos importantes, especialmente se há uma lógica de mercado que torna o filme acessível, como é claro em “Bohemian Rhapsody”. Sobre o grupo interessa a junção do quarteto e os processos criativos inquietos. Sobre Freddie interessa sua transformação diante da fama e os relacionamentos conturbados, inclusive com ele mesmo.

Prova disso é que os roteiristas trocam a problematização pela sutileza. A bissexualidade de Freddie, por exemplo, corre em paralelo ao surgimento da banda. O uso de drogas é mostrado en passant. Ao saber que é soropositivo, o vocalista tem um momento expositivo para falar sobre isso, mas o roteiro não usa sua doença para criar um grande melodrama. É uma escolha do estúdio preferir se comportar diante da gritaria que foi o surgimento do Queen e internalizar na persona do cantor, bem como é uma escolha do público considerar essa como apenas uma versão mais light dos fatos.

Bohemian Rhapsody3A admiração por Freddie fica evidente no longa, talvez por isso os produtores se preocupem em humanizá-lo para além da lenda que ele se tornou. Sua figura ainda é referência para uma série de cantores e suas músicas são imortais. Mais de 20 anos depois de sua morte, ele ainda tem muito a falar para as pessoas. O mundo passa por uma crise terrível em suas estruturas sociais e ver Freddie breaking free em busca de seu espaço é inspirador. Se a música era a promessa de fugir da opressão, quais concessões um artista precisa fazer para se manter firme no palco? “Bohemian Rhapsody” é sobre um cantor sem padrões, às vezes inconsequente, que constrói uma família no Queen. Freddie é atemporal.

A entrega de Rami Malek ao personagem é essencial para elaborar esse discurso mais afetivo sobre a ascensão do artista. Freddie foi uma figura muito peculiar, marcado pelos figurinos e performances exuberantes, além do temperamento imprevisível. Malek incorpora a aparência e os trejeitos, mas não vira uma caricatura da caricatura. O ator faz justamente o que Freddie fazia: primeiro gera um estranhamento pela péssima prótese dentária, depois a (com)paixão. Assim, o maior mérito do filme é ver Malek explodir em momentos fundamentais para o Queen, como o evento Live Aid, que ficou para a história da banda.

As principais músicas da banda costuram esses momentos históricos, funcionando seja colocadas como elementos diegéticos ou não. O uso das canções não é óbvio e há espaço para um diálogo entre a dramaturgia e os números musicais. Essa harmonia é comprovada especialmente na sequência que mostra a criação de “We Will Rock You”, momento de completa inspiração dos roteiristas que reconhecem que existe diferença entre um filme musical, como gênero cinematográfico, e um filme sobre música, como arte. Em contrapartida, é justamente nisso que o diretor Bryan Singer e seu substituto, Dexter Fletcher, provam que não suportaram muito bem o peso de dirigir um filme que não é da praia deles. Se o roteiro engata na segunda hora de projeção, os diretores se afrouxam.

Aos trancos e barrancos, “Bohemian Rhapsody” talvez não seja uma cinebiografia definitiva sobre um ícone da música. Funciona, por outro lado, para mostrar o quanto Freddie Mercury ainda está vivo na memória das pessoas e como mexe com nossos sentimentos a cada verso cantado (“Love of my life, you’ve hurt me…”). É uma obra um tanto desengonçada, mas que emociona porque fala abertamente sobre afeto, identidade e resistência, tríade essencial nos tempos difíceis que vivemos.

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