Crítica | Assassinos da Lua das Flores (2023), de Martin Scorsese

Aos 80 anos, Martin Scorsese desfruta de boa reputação, fortuna crítica invejável e privilégios que o permitem realizar exatamente o que deseja, dispondo de orçamentos gigantescos e de apoio incondicional dos estúdios, da imprensa e do público, que o reconhecem como intelectual de um cinema que alcança as massas. Tudo isso é resultado de uma carreira que se consolidou há muito tempo, cercada de obras icônicas que inspiram gerações e que o coloca em um pedestal desejado por muitos.

Ainda que não seja o único figurão do cinema mundial que permanece produtivo sem abrir mão da qualidade de suas obras, Scorsese tem suas particularidades. De um filme para outro, o diretor foi estabelecendo a sua identidade cinematográfica a partir da recorrência das narrativas, dos modos de produção e do agenciamento da equipe, e principalmente do fôlego invejável para tratar de tramas épicas que atravessam a história da cultura norte-americana. Todos os trabalhos de Scorsese são resultado de pesquisas aprofundadas e da forma como ele, como autor, compreende as transformações da sociedade.

Não é diferente em Assassinos da Lua das Flores, novo longa-metragem adaptado do livro escrito por David Grann. É irresistível chegar a este novo filme já habilitado para constatar todos os atributos que fizeram de Scorsese uma lenda. Está tudo lá mesmo, como sempre esteve, com breves variações – agora, com ares de faroeste, os mafiosos ameaçam a honra ancestral de uma comunidade indígena. A morte dos nativos é a única forma de obter prosperidade dos exploradores. Assim, o roteiro aponta o interesse de expor e reparar injustiças históricas e se alinhar a questões políticas urgentes. O mosaico de personagens segue a dinâmica já conhecida de Scorsese, em que a disputa pelo poder e a violência exercem um papel fundamental na estruturação do argumento.

Em filmes como esse, a experiência do cinema teria virado pura constatação? Como nós, críticos e público, podemos garantir a apreciação justa de uma obra sem cair em tentação de já reconhecê-la como irretocável de pronto? Desse modo, prefiro olhar para Assassinos da Lua das Flores com mais distanciamento e menos reverência ao diretor. Desamar brevemente em prol da sobriedade analítica. Não por nada, mas talvez porque não me interessa, no meu exercício de pensamento, repetir o que já se tem dito à exaustão sobre os méritos óbvios do filme. Se fosse assim, bastaria, então, ler apenas uma crítica entre milhares que pontuariam os mesmos elogios pertinentes, que chegam até mesmo a defender tal minutagem inacabável de quase 3h30 de duração.

As complexidades que compõem Assassinos da Lua das Flores são mais fáceis de absorver se comparadas às de O Irlandês, por exemplo. Os tensionamentos narrativos se afrouxam gradativamente para recontar, com certa didática, a relação entre o povo indígena Osage, o fingimento dos homens brancos exploradores e a luta pelo óleo. A primeira metade da obra, muito mais inspirada, estabelece o conceito estético já conhecido de Scorsese, mas nunca ultrapassado, como os planos sequências que dançam pelos corpos das pessoas, pelos gestos e pelos objetos cênicos. Na metade seguinte, quando o filme se direciona à investigação dos crimes, esse frescor se perde ao ser substituído por um formato mais clássico, burocrático e corrido em sua conclusão (o filme já é gigante e ainda precisa correr com alguma coisa?).

Ainda que a trama seja contada pelo personagem de Leonardo DiCaprio (outros personagens contribuem pontualmente em voz over quando convém para o diretor), é interessante notar que o centro dramático é uma família de cinco mulheres indígenas que, aos poucos, são abusadas e descartadas pelos homens brancos com quem se relacionam. Scorsese tem verdadeira obsessão pelos homens todo-poderosos de seus filmes, aqui representados principalmente por Robert De Niro, a única grande atuação da película. É fascinante como De Niro encarna William Hale a partir da ambiguidade feroz entre ser um benfeitor (um Rei) e, ao mesmo tempo, um explorador elitista como podemos encontrar até hoje ocupando espaços de poder. Ele não é só malvadinho, como o cinema americano tem adorado retratar. Hale é completamente real. Os homens de Scorsese, em geral, exercem o pior que existe em suas masculinidades tóxicas para conseguir poder e glória (um deles é questionado até se “gosta de mulheres”). Aqui, são todos antipáticos e difíceis de se relacionar, e que bom que Lily Gladstone e as demais mulheres trazem força (e alívio) para a tela, ainda que sejam submetidas a certa passividade diante do enredo.

O valor de produção de Assassinos da Lua das Flores faz jus ao orçamento soberbo de US$ 200 milhões, ao contrário do que vimos em outras superproduções como Barbie e Oppenheimer. A reprodução histórica está em todos os detalhes, dos cenários aos figurinos, da pintura aos efeitos visuais, e na participação uma equipe grandiosa e comprometida. Isso contribui para a criatividade e a imersão na trama, mesmo quando ela é contada por meio de planos mais fechados ou crus. Sabemos exatamente onde estamos (temporalmente e artisticamente) e os porquês de tudo porque somos convocados a ser cúmplices daquelas atrocidades (os anos 1920 nunca foram tão atuais!). O  primor técnico facilita a passagem por uma trama extensa demais que, de fato, não é enfadonha, mas que prefere também não correr grandes riscos e entregar o que já se espera para receber os aplausos de sempre.

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Diego Benevides é jornalista, pesquisador, crítico e curador de cinema. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e sócio-fundador da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). Doutorando e Mestre em Comunicação pelo Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC), com estudos sobre cinema brasileiro na linha de pesquisa Fotografia e Audiovisual. Saiba mais.

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