Avaliação: 3/5
Há um intenso grito por liberdade em “Alguma Coisa Assim”, longa-metragem dirigido por Esmir Filho e Mariana Bastos a partir do curta homônimo premiado na Semana da Crítica do Festival de Cannes, em 2006. Mari e Caio, protagonistas dessa história de amores, buscam constantemente quebrar as correntes e fugir dos rótulos, ainda que nem sempre saibam o que estão fazendo e para isso precisem correr riscos.
Se no curta-metragem acompanhamos o florescer da sexualidade na época da adolescência, o longa expande os conflitos dos personagens em busca de enxergá-los em novos pontos de vista, questionando-os sobre o passado, o presente e o futuro. As responsabilidades passam a exigir deles novos posicionamentos, ainda que a fragilidade dos sentimentos demonstre que talvez eles ainda tenham muito a aprender sobre tudo.
As ruas luminosas da noite efervescente de São Paulo dão espaço para uma Berlim com tons mais controlados, supondo um processo inevitável de amadurecimento do casal de amigos. Para retomar a história de Mari e Caio, os diretores optaram por ambientar o longa em três períodos que se entrelaçam: 2006, quando o curta foi rodado, 2013 e 2016.
Esse recorte de 10 anos é percebido não apenas pelo uso da montagem, mas também pela interpretação dos atores Caroline Abras e André Antunes. É positivo para o filme expor o elenco crescendo junto com seus personagens para além das transformações físicas evidentes de cada um. Aprendemos muito de um ano para o outro e as mudanças internas e externas são inevitáveis.
Esmir e Mariana repensam o valor das imagens do curta-metragem original, fragmentando-as algumas vezes durante o longa. Os diretores interferem no material anterior, propondo novas formas de ver e ouvir essas imagens. Assim, não é apenas o uso pelo uso, mas uma outra forma de enquadrá-las na nova proposta fílmica. Essa decisão acertada faz com que o longa tenha unidade em sua abordagem temporal, criando uma nova experiência tanto para quem conhece ou não o curta que serviu de inspiração.
Se no curta-metragem vimos Mari sendo peça fundamental para a descoberta sexual de Caio, mesmo apaixonada por ele, o longa questiona o que foi feito com esse sentimento interrompido. Percebemos o distanciamento geográfico entre eles, que se reencontram depois de anos em Berlim, mas as consequências de tudo que viveram não são entregues de imediato. A trama se encarrega de investigar as camadas pessoais de cada personagem.
Caio já não tem mais dúvidas em relação à sexualidade e vai para a Alemanha com o objetivo de estudar biologia e esquecer um relacionamento que não deu certo. Mari não leva uma vida tão segura por lá. Sem endereço físico, ela mora nos apartamentos onde trabalha como decoradora até serem alugados. Parece que ela está sempre fugindo ou, na realidade, tentando se encontrar. Sua visão sobre casamento e constituição familiar não é das mais tradicionais e é colocada à prova após um deslize entre os dois amigos.
Os dois primeiros atos do longa-metragem pensam esse reencontro, valorizando a riqueza das imagens potencializadas pela direção de fotografia de Juan Sarmento e Marcelo Trotta. A liberdade dos personagens também está na forma em que as sequências são conduzidas, fazendo deste um longa dinâmico e leve de assistir.
Os atores Caroline Abras e André Antunes exalam química em cena, desprendidos de qualquer vício de interpretação que poderia deixar a obra careta. Há um trabalho evidente de composição e recomposição dos personagens, explorado ao máximo pelos diretores. O elenco de apoio também conta com a participação de Clemens Shick, que já atuou em filmes como “007: Cassino Royale” (2006) e “Praia do Futuro” (2014), dirigido pelo cearense Karim Aïnouz.
O ato final, no entanto, ganha outro contorno ao discutir o aborto. Após uma sequência magnética e sensual ambientada na natureza, Mari e Caio precisam definir o que querem para o futuro. Se quase sempre o filme se posiciona como “feel good”, agora ele se torna mais sério do que seria esperado, causando uma quebra na experiência de assisti-lo.
A discussão sempre válida sobre o tema, em diálogo especial com a proibição no Brasil, acaba ficando na superfície, já que o filme prefere não se posicionar sobre as atitudes da personagem quanto à gravidez indesejada. AA escolha dos diretores é compreensível, mas parece ter pouca coragem em uma obra que defende, a todo tempo, o enfrentamento das situações de crise desses dois jovens.
Mas também é nesse momento que Caroline Abras mostra sua força como atriz, protagonizando os melhores diálogos do longa. André Antunes, que além de ator é psicanalista e professor, estava afastado do cinema desde 2006, mas aparece sempre à vontade em cena. Destaque para uma sequência específica, quando os dois discutem quase no improviso a decisão pelo aborto, a dupla cresce em cena; e crescimento é um dos temas principais da obra.
Talvez “Alguma Coisa Assim” não quebre tantas correntes como propõe, mas é um filme agradável, concebido com muito carinho por uma dupla de cineastas que acredita que o cinema pode ser uma plataforma para discutir os sentimentos e o nosso próprio lugar com o mundo. É bom ver uma história que mostra os afetos tentando resistir em uma sociedade cada vez mais opressora.
Publicado originalmente pelo autor no Jornal Diário do Nordeste.