Avaliação: Excelente ★★★★★
O cinema nacional que está fora dos grandes circuitos comerciais e, quase sempre, dos grandes orçamentos revela algumas preciosidades, cuja reação imediata é a de “esse filme precisa ser visto!”. A experimentação de gêneros pelos realizadores brasileiros não é novidade e percebe-se cada vez mais o interesse em desenvolver o mistério, o suspense e o terror. Seja pelo olhar sempre certeiro de Juliana Rojas (“Trabalhar Cansa”, “Sinfonia da Necrópole” e “O Duplo”), Marco Dutra (“Quando Eu Era Vivo”), Gabriela Amaral Almeida (“Estátua!”) ou Lucas Sá (“Nua por Dentro do Couro”), para citar apenas alguns, a precisão dessas histórias não apenas referencia mestres de tais gêneros, mas cria uma identidade original própria bastante promissora. Mas esse texto não pretende fazer comparações, pois elas seriam injustas com a autenticidade de “A Misteriosa Morte de Pérola”, dos cearenses Guto Parente e Ticiana Augusto Lima.
Um filme feito por dois, sobre dois em uma situação de isolamento e paranoias. Ao se mudar para a França para estudar Artes, uma jovem (interpretada pela diretora) se vê enclausurada na tristeza, no silêncio e nos espaços vazios de seu novo apartamento, quase em uma construção dramática kim kidukiana (“Casa Vazia”). Ela não busca exatamente adequar-se àquele lugar, talvez por não querer mesmo, mas pretende fazer com que os dias passem metodicamente mais rápidos. Enquanto faz ligações que não são atendidas e espera correspondências que nunca chegam, o silêncio da garota embala seu cotidiano. Não há uma preocupação em justificar demais, nem mesmo explicar a fantasmagoria daquele ambiente ou aprofundar possíveis sonhos, que se misturam com ilusões, durante a narrativa. O que se vê, como defende a diretora, é uma história de amor embalada pelo fantástico e pela reinvenção das opções comuns ao suspense.
Dividido em duas partes (Os Fantasmas da Solidão e As Dobras da Morte), elas são almas gêmeas. Na segunda, vemos o namorado da jovem (interpretado pelo diretor) refazendo os passos da amada, no mesmo lugar, com a mesma densidade dramática. Mistérios são revelados a partir da compreensão de um extracampo maior do que o que a tela pode sugerir ou do que as máscaras podem esconder. Os personagens buscam, acima de qualquer coisa, um momento de interseção, magistralmente arquitetado nos minutos finais de projeção. Interseção que talvez esteja na procura do amor, na transformação da solidão ou, também talvez, no que conhecemos sobre a morte. Até mesmo na interpretação árdua dos sonhos, considerados, às vezes, reproduções de desejos internalizados.
Feito em um momento de isolamento dos cineastas enquanto estudavam na França, o filme carrega um tom autobiográfico moderado, ao mesmo tempo em que permite que os diretores se libertem em um jogo de cena mais íntimo, onde a ausência de uma equipe técnica grandiosa poderia amarrar atuações ou se restringir a soluções comuns. Temos um filme autoral, tecnicamente irrepreensível, que discorre sobre o vazio e sobre o silêncio com a mesma precisão que deixa o som e a trilha sonora envolverem o público. Alterna, também, o sentimento que temos ao compactuar com os conflitos dos personagens, fazendo com que eles superem qualquer traço unidimensional do que vemos, por exemplo, em algumas obras de suspense da indústria americana.
“A Misteriosa Morte de Pérola” não deixa de ser um filme cinéfilo, que carrega pelo próprio cinema e pelas artes visuais sua visão de mundo, material tão importante para o bom trabalho de montagem e de emparelhamento e duplicação de significados. E tudo isso que foi dito pode ser, como costuma ser, apenas uma fração do que o longa oferece ao público. A compreensão da história é particular e pode ser mais silenciosa do que esse texto de tantas linhas. Cinema bom é aquele cuja imersão se intensifica no decorrer dos atos, sem precisar de muletas narrativas ou “acordar” o público para fazê-lo lembrar o que está assistindo. Há ali um ciclo, um recorte fantasmagórico possível de identificação, não apenas pelas paranoias, mas pela sensação de que o mundo é grande, mas que na maior parte do tempo estamos sozinhos, seja dentro de nós mesmos ou buscando algo que nem sempre é fácil encontrar. As pessoas são capazes de tudo para continuar vivas, mesmo sabendo que a morte é uma possibilidade.
O filme foi exibido na Mostra Alumbramento em dezembro de 2014, em Fortaleza (CE).