Seguem intensas as discussões sobre as mudanças que a tecnologia pode causar em diversos campos da sociedade, sobretudo diante do avanço da inteligência artificial. O cinema sempre se utilizou da tecnologia para aprimorar as suas narrativas e uma parte dos debates atuais se dá ao fato do que é bem-vindo ou não e do que é terrível ou útil na inteligência artificial nos modos de produzir imagens audiovisuais. O impacto está sendo avaliado à medida que realizadores de todas as partes do mundo tocam nesse recurso que está disponível para subverter os modos de produção das artes.
Exibido na programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, O Senhor dos Mortos (The Shrouds, 2024) traz mais uma investigação de Cronenberg sobre as interpretações do corpo diante da tecnologia e da ambição humana. A trama acompanha Karsh (Vincent Cassel), um empresário do setor funerário que oferece aos seus clientes a possibilidade de permanecer em contato com os parentes falecidos por meio de uma câmera instalada nos caixões enterrados a sete palmos do chão.
O próprio Karsh é beneficiado por sua invenção – talvez a tenha inventado para isso -, já que pode ver como está a sua amada, mesmo que ela esteja em completa decomposição. Há também uma espécie de delírio que une a tecnologia e os sonhos do protagonista, que constantemente vislumbra a presença de sua esposa falecida enquanto tenta seguir a sua vida solitária no mundo “real”. O comentário de Cronenberg diante disso tudo destaca o desespero humano com a separação física das pessoas amadas, uma busca de conforto que nunca vem para algumas crenças da sociedade ocidental.
A abordagem tanatológica da obra, ou seja, aquela que se insere nos estudos sobre a morte e o morrer no Ocidente, interessa bem mais do que o circuito tecnológico em que a trama é ambientada, que não parece ir além do que outras ficções científicas e distopias já fizeram para discutir a sobrevida dos seres humanos. Ao interpretar como o rompimento dos vínculos afetivos não somente afetam as subjetividades, mas também são impulsionadores criativos das imagens do e para o filme, Cronenberg evidencia as dificuldades do enlutamento dentro de um conceito individual, mas que resvala em um contexto social mais amplo.
Outro recurso de Karsh para enfrentar o luto é conversar com Hunny, um avatar feminino muito semelhante à sua esposa (a ótima Diane Kruger interpreta três personagens), criado para auxiliar em assuntos diversos e que, posteriormente, entenderemos para quais fins ele é concebido e quais interferências podem ser feitas na realidade do personagem. Aqui, Cronenberg utiliza a inteligência artificial como recurso narrativo, mas de forma limitada e pouco inventiva.
Fica claro que Hunny, por mais aprimorada que seja, pode trapacear Karsh com suas intervenções, mas não temos, de fato, uma proposta mais madura sobre as virtudes ou os danos desse personagem virtual na vida do personagem. Cronenberg talvez até aponte para a inevitabilidade de toda essa virtualização ao fazer de Karsh um utilizador da tecnologia intensa, quase bélica, para sobreviver à solidão, mas não vai longe, mesmo que em algum momento tudo se misture (e se confunda) na idealização entre real, virtual e sonho.
Durante a exibição de O Senhor dos Mortos (The Shrouds, 2024) no Festival de Cannes, o cineasta canadense David Cronenberg falou ao Deadline que acolher a IA como processo criativo não impede de temê-la. “Como cineasta que acolhe com satisfação o advento das imagens geradas por computador, que chamamos de CGI, isso tornou a produção de filmes muito mais fácil. (…) Acho que a inteligência artificial pode melhorar isso, então, nesse nível, saúdo isso e estou ansioso para usá-lo. É bastante chocante o que pode ser feito agora mesmo com o início da inteligência artificial”, disse. Aparentemente instigado com os limites da IA, Cronenberg ainda não chegou ao ponto de colocá-la em crise de forma contundente.
De forma mais frontal na discussão sobre o uso da inteligência artificial no cinema, o diretor alemão vanguardista Alexander Kluge cria em Miniaturas Cósmicas (Cosmic Miniatures, 2024) um emaranhado de imagens geradas por computador. A partir do uso de um programa de pesquisas médicas, o cineasta solicita a criação de diversas imagens na tentativa de elaborar uma narrativa de fluxo com o que vai surgindo. Fórmulas, equações inacabáveis e figuras desconexas se amontoam sem muito a dizer, com um toque de humor aqui e uma trilha sonora sublinhando ali.
Durante a primeira hora do longa-metragem, que é divido em capítulos, mas não faria diferença se não fosse, Kluge interpela o espectador com tudo de mais desinteressante que a IA pode criar naquele momento. Abrir mão de uma narrativa clássica não é novidade para Kluge que, aos 92 anos, tem em sua trajetória o interesse pela inventividade experimental e um trabalho subversivo com os gêneros cinematográficos, mas é justamente quando Miniaturas Cósmicas parece se aproximar de um discurso clássico mais consistente (a história do cachorro astronauta, por exemplo), que o realizador justifica parcialmente o dispositivo proposto para a trama. Isso acontece sobretudo nos minutos finais da narrativa, no caso de você não ter desistido antes de terminar de assistir à obra.
Fica complicado de entender até mesmo como a experiência de Kluge se conforma diante das possibilidades pálidas desse aparato tecnológico. Mesmo que a intenção seja essa de obter uma espécie de “não-filme”, de estender a experimentação a vários nadas e confundir (questionamos constantemente o que estamos vendo, mais por dúvida do que por curiosidade), o resultado pobre do longa-metragem não traz muitos resultados. Talvez a obra se prenda a uma ideia superficial ou poética de que por trás de todas as imagens digitais que podem ser criadas em segundos, um artista de carne e osso é fundamental para a preservação e o progresso do cinema. Mas isso a gente já sabia.
Filmes vistos na programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro/2024.
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